A filosofia moral ou ciência da natureza humana pode ser tratada de duas maneiras diferentes, cada uma delas tem o seu mérito peculiar e pode contribuir para o entretenimento, instrução e reforma da humanidade”.
 
É assim que David Hume começa o seu ensaio “Investigação Acerca do Entendimento Humano” [Editora Nova Cultura, São Paulo, 1989, página 63 (1)]. Hume reduziu a moral à natureza humana, o que significa que (para David Hume) os valores morais não existiriam, em si mesmos, se o ser humano não existisse. Ou, por outras palavras, segundo David Hume, os valores que presidem à ética e à moral — por exemplo, o valor da justiça — são apenas epifenómenos da existência humana, e não realidades ideológicas em si mesmas. O realista Nicolau Hartmann colocou posteriormente as ideias de Hume no sítio onde deveriam estar e de onde nunca deveriam ter saído: segundo Hartmann, os valores da ética e da moral (2) existem por si mesmos — por exemplo, o valor da justiça existe por si mesmo e não é dedutível de uma qualquer utilidade; e, conclui Hartmann, existem provavelmente muitos valores éticos e morais que o ser humano ainda não descobriu.
Esta ideia de Hartmann é corroborada pela história contada neste verbete, em que uma mulher ocidental se mistura com povos ou comunidades com uma cultura diferente daquela que evoluiu na Europa à sombra do Cristianismo que aglutinou em si os relicários da filosofia grega pós-socrática, do Criador Uno do Judaísmo, e da filosofia revolucionária de Jesus Cristo que se definiu como “filho do Homem”. Esta auto-definição de Jesus Cristo como “filho do Homem” foi mal-interpretada e adulterada na cultura europeia e com o passar do tempo, e de tal forma, que quando esta chegou a David Hume, a cultura tornou-se antropocêntrica e à moda dos sofistas que os pós-socráticos tinham combatido. O que Jesus Cristo quis dizer com a sua auto-definição como “filho do Homem”, é que ele se assume como “um ser humano entre os seres humanos”, e não que o ser humano é o centro do mundo e do universo; e, por outro lado, os contratualistas, que Hume criticou (por exemplo, Hobbes, Locke ou Rousseau), também adulteraram a noção cristã de “filho do Homem”, embora de forma diferente da de Hume, quando introduziram, por exemplo, no conceito de “Homem”, a ideia de uma igualdade materialista radical coerciva e política (por exemplo, com a ideia do “bom selvagem”) que Jesus Cristo não defendeu (por exemplo, através da parábola dos talentos, S. Mateus, 25-14).
O relato do horror da referida mulher ocidental em relação aos costumes de uma tribo africana reflecte uma diferença de valores entre duas culturas, o que significa que existem valores ético-morais que essa tribo africana ainda não reconhece como válidos; o que significa que, provavelmente, também existirão outros valores que nós próprios, a Ocidente, ainda não conhecemos ou que não reconhecemos como sendo válidos. E provavelmente também se coloca a hipótese de regressão moral da sociedade ocidental, uma vez que o progresso não é uma lei da natureza, e basta uma geração de bárbaros (por exemplo, os nazis ou os estalinistas) para reduzir uma civilização e um sistema de valores ético-morais a escombros.
Neste contexto, a teoria moral de David Hume é um perfeito absurdo, mesmo que descontemos a sua contraditória ambiguidade que consiste em começar pela exaltação das "paixões humanas" entendidas como forças originárias, na sua teoria da moral, para acabar depois no reconhecimento arrependido do valor do simbólico, na sua teoria da justiça. Hume inverteu a ética cristã (e estóica) que afirmava que “é útil porque é justo”; Hume passou a dizer — tal como a tribo africana supracitada — que “é justo porque é útil”. Foi, de facto, David Hume o precursor do utilitarismo, e não Bentham.
Para justificar a sua inversão dos critérios do justo e do útil, David Hume concentra-se sobretudo nos casos ou hipóteses demonstrativas que se constituíam como excepções à regra (Hume era homossexual, o que explica esta sua tendência para se concentrar nos casos que escapam à regra). Neste contexto, diz Hume que a razão humana é incapaz de provar porque é que é mau cometer um incesto ou um parricídio, ou de provar porque é que vale mais preferir um ferimento num dos seus dedos (dos de David Hume) do que preferir a destruição do mundo inteiro. Se David Hume fosse vivo, certamente que diria que a razão humana é incapaz de provar por que o casamento de crianças daquela tribo africana é eticamente condenável — porque, segundo Hume, sendo alegadamente útil para aquela sociedade tribal, defenderia a ideia concomitante de que tal casamento infantil seria justo.
Para David Hume, o valor da justiça é deduzido da sua utilidade (subjectiva e/ou colectiva); para Nicolau Hartmann, o valor da justiça existe por si mesmo, e não é dedutível nem é dependente de qualquer utilidade.
Porém, nem aquela sociedade tribal africana, nem a sociedade ocidental, escapam ao critério utilitarista da justiça: para aquela tribo, o casamento entre infantes é justo porque é útil; e, por exemplo, para sociedade ocidental, o aborto também é justo porque é útil (aos sujeitos que são, muitas vezes, a excepção à regra que Hume tanto gosta). Concluímos então que em nenhuma das duas culturas (a tribal africana e a ocidental) se reconhece o valor moral independente da sua utilidade. É por isso que aquela mulher ocidental não tem, nem autoridade de facto, nem autoridade de direito, para poder criticar aquele costume anético e irracional da tribo africana.
Paradoxal e ironicamente, utilitarismo de David Hume transformou a sociedade ocidental naquilo que ele próprio criticava em Rousseau: numa sociedade de “bons selvagens”.
(1) Como se verifica, não preciso do Acordo Ortográfico para ler um livro editado no Brasil.
(2) A ética está para a moral, como a musicologia está para música.